segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Origem

           Ao mesmo horário passara todos os dias por aquelas avenidas. Sempre de calças e moletom, ambos pretos como aqueles pés imundos. Dedos disformes serviam de paramento, em um par de velhos chinelos azuis. Não sabia se ia ou vinha.
                - Boa noite. – disse
                - Bom dia.
          Três sacos, também pretos, pareciam carregar todo conjunto de espaço sob os ombros. A direção era sempre a mesma, sem meta aparente. Levara-o a margear o asfalto com destreza. Como se, de olhos fechados, soubesse todo aquele caminho.
           Não sabia se ia ou vinha. Se ia, encontrava tudo o que conservara sob seus ombros, caminhara com tanto peso, mas descrevera todas aquelas ruas, desenhadas, com luzes de postes se fazendo de lua.
         Caminhando, a procurara no céu. As próprias luzes, que outrora mostraram o caminho, calavam o reflexo do sol que iluminara a alma. Escondia o reflexo das palavras que, caudalosamente, saiam do seu peito, da saudade de si mesmo. As luzes não iluminavam os pés, nem a cabeça, apenas aquela roupa escura.
            Levava um coração, avultado como o dos santos, abstrato em solilóquios. Ultimamente, andava sem saber quem era. Pensava claudicante, ter, do nada, surgido no tempo. Sem saber que o tempo é que surgira nele. Tentava dar ideia de seu pensamento fundamental, lembrar (ou saber) de onde partira.


The Birth of the New Man
Salvador Dalí - 1943

6 comentários:

  1. Nem sabe pronde vai nem donde vem...
    Gostei!

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  2. Sensacional. A escolha das palavras, a ideia que passa. Consegui me imaginar assistindo à cena, logo ali, ao lado do descrito. Gostei.

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  3. Homem que é homem tem que ter coragem. Coragem pra ser homem. Coragem pra assumir seus defeitos. Coragem pra mostrar suas fragilidades…

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  4. Rafael... Sempre falando sobre a peregrinação do homem, a descrição dos caminhos pelo qual ele passa... Sua busca por algo que não sabemos ao certo o que é, ou se é uma busca de algo, visto que a origem tampouco se faz reconhecida.
    Muito bom acompanhar, é como se você fosse a lente por meio da qual a gente assiste a vida de certo alguém.

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  5. "Levava um coração, avultado como o dos santos, abstrato em solilóquios. Ultimamente, andava sem saber quem era. Pensava claudicante, ter, do nada, surgido no tempo. Sem saber que o tempo é que surgira nele."
    Esse trecho me fez lembrar do sentimento que muitas vezes me invade a alma por me sentir como se não pertencesse a esse mundo...

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