Nosso carro
estaciona.
Nosso? Não me
lembro de ter companhia. Uma mulher, já com seus 60 anos, é quem dirige. Sua
idade só é perceptível após um tempo. A maquiagem forçada, e a roupa
extravagante escondiam muita coisa. Na esquina, um bar, um desenho na parede
mostra um cozinheiro. Chama-se ‘Frigideira’.
- É aqui. –
diz a motorista.
Descemos. Era um carro prata,
velho.
- Onde é o
banheiro? – pergunto.
Um sujeito
amocambado num balcão aponta com a cabeça um pedaço, quase morto, de madeira
azul. Olho na direção, e vejo a pequena porta com a tinta gasta onde quase não
se vê mais sinais de vida daquele resplandecente azul. Aquela porta escondia
menos coisas que a maquiagem. Largo o balcão e caminho até a porta, sem
recordar, ao certo, se realmente fui. Acho que fiquei apenas ali, parado.
- Tem cigarro?
Ele parecia
não ter voz. Com a cabeça escabreada entre os ombros, tenta usar a garganta, a
afonia não deixa, responde que não, apenas com um gesto, novamente. Merda,
pensei. Procuro a saída. Prontamente, vou até a porta, avisto a motorista,
chego e me sento sem olhar onde. Eu estava cansado, respirava fundo, com olhos
e ouvidos perdidos em meio a um vozario inteligível.
Olho ao redor,
e vejo algumas pessoas cujas faces não me vem a memória. Não fico surpreso
quando a motorista os apresenta como seus amigos. Perguntam meu nome, invento.
Digo um nome espanhol, Juan, Miguel...
Eles eram uns
seis, sete... Um deles saca um cigarro filtro vermelho, me oferece. Apoio o
cigarro no canto esquerdo da boca, procuro um isqueiro. Exploro os bolsos da
calça sem sucesso. Alguém risca um fósforo, é a motorista, estende-me a mão
envolvida por estrepitosos braceletes, reluzidos pela chama. Junto as mãos em
forma de concha, o cigarro acende. Um trago.
Iago...
Iago... Alguém atraia minha atenção, falavam comigo, fixo a indiferença e um
deles continua a narrativa ao passo de quem está para chegar ao clímax.
Distraio-me, o som, das vozes ou da descarga, dificulta a compreensão do que
ele diz.
Fico, apenas, acenando
afirmativamente a cabeça. Enquanto falava, vez ou outra, cuspia para matar a
sede de um cachorro manco, que, decididamente, fitava a porção sobre a mesa.
Percebo que assenti afirmativamente além da conta. Perguntam-me por onde anda
um tal de Gama.
- Gama?, -
pergunto, - É... Então, não disseram? Mudou rapaz.
- Mudou? –
perguntam como que em coro.
- É, mudou.
Eles se
entreolham, dão impressão de que a mudança do tal Gama fosse mentira. E era. Um
deles tartareia:
- Era um
louco, de boa cabeça. Deus o guie.
Novamente
levanto e vou, ou não, ao banheiro. O caminho, dessa vez, era tortuoso e
insincero, faz lembrar um cansativo labirinto. Que labirinto? Era apenas um
túnel, um corredor levando até aquela porta.
Quando volto,
alguém me puxa. ‘Vamos comprar cigarro’, diz com uma voz rouca, quase afônica.
Entro no carro, sem olhar com quem. Andamos um pouco, no rádio uma música
triste. ‘Vai torturar teus sonhos tão mesquinhos... Vai reduzir, as ilusões a
pó...’. Dirigia com os olhos fanáticos, exaltados; com a devoção, quase que
cega, de um apreciador apaixonado. Conversamos um pouco, até encostarmos num
posto. Nosso carro estaciona. ‘Preste atenção querida... De cada amor tu
herdarás só o...’. As portas do carro batem.
Em pé, procuro
o motorista, ele não está.
- Ei, Javier!?
– alguém puxa meu braço.
Uma voz pode
recombinar completamente a cor de dias infaustos. Como o canto de um
sanhaço-azul, a mudar a cor de uma primaveril manhã cinzenta. E, com aquela
voz, todo som harmonizara-se.
Tudo o que era
não tinha importância. Ela me chama pelo braço, vou junto. O céu, límpido,
resplandece, iluminado por aquele sorriso, o cair da tarde. Ela era linda, como
o céu. Andamos, e já não sei onde estamos.
Nosso carro
estaciona.