Estaciona a velha leitoinha 125, bem em frente ao bar da bocha; este que era
administrado por aquele que lhe matara em sonhos, era o ano de 1978. Num dia
nublado em que a pedra do céu apenas enganava a vinda da chuva, desceu da
moto usando suas botas marrons de sola rasgada e uma capa de chuva preta sobre
um moletom grosso.
Sem
tirar por completo o capacete, adentra o bar perdendo os olhos nos vários
cartazes de cerveja estampados na parede.
Eram tantos que, por vezes, traziam vertigem aos olhos. Com a mesma lhaneza que
entrara no botequim, puxa um dos bancos altos de madeira e senta-se ao
balcão. Olha em direção a um guri quase que escondido atrás da estufa de
salgados. Para chamar a atenção do guri que, sonso, perdia os olhos na rua,
bate com força o punho esquerdo no balcão. O copo americano semicheio de água
com uma colher de chá dentro, treme. A água treme, a colher cintila no copo, o
vidro de algumas garrafas se encontram; tremem os fios de cabelo da bunda do
guri. O bar engole seco, todos olham para o balcão.
-
Cadê o merda do Ademar? – solta a voz em alto tom, para o guri ou pra quem quer que saiba.
[silêncio]
Como
outrora, enfia o punho no balcão, dessa vez com mais força.
-
Cadê o corno do Ademar, porra!? – diz encerrando os olhos trêmulos do rapaz que
nada tinha com aquilo. Desencostando do balcão, levanta-se do banco. Leva a mão
esquerda ao bolso da calça e, tira uma moeda. Raspando-a entre o polegar e o
dedo indicador, larga a moeda no balcão.
-
Uma caixa de fósforos, seu merdinha.
Um dos braços do guri tenta esboçar
reação, mas, falha no ar. As pernas o traíam. Num passo rápido, o dono da moeda
encosta-se no balcão e, como se chamasse para a
linha de batalha, bate com falange dos dedos da mão direita ligeiramente no
balcão.
-
Não tem caixa de fósforos, nessa bosta?
O
guri olha para o chão, movendo apenas os olhos, sorri um sim medroso e
acanhado. Agacha-se e, ao levantar, ensaia um passo para frente e joga a caixa
de fósforos na direção de seu medo. O rapaz toma a caixa de fósforos para si e,
tira do bolso da capa uma pequena caixa de ferro. Dentro havia algumas
cigarrilhas, que aleatoriamente escolhe uma.“O merdinha tem medo mesmo, o
puto do pai dele deve ter mais ainda.”. Caminha em direção ao
umbral de entrada, apoia a cigarrilha na boca, risca um fósforo e a acende.
Fuma boa parte da cigarrilha num só hausto.
Poucos
metros dali, uma mulher empurra uma bicicleta Ceci de um rosa quase claro. Sem
que ao menos tentasse disfarçar os olhos dela entregaram-na, quando
subitamente, atrelou-os aos do rapaz. Ela sorri o sorriso sem graça de quem tem
seu crime descoberto, sem ao menos demonstrar o receio ante ao que poderia lhe
sobrevir. De alguma maneira, também sabia que seu marido era um merda, tal qual
poderia ser o filho que inocentemente começava ainda que despercebido, a
ascender em seu ventre. Ela encosta as mãos no portão feito de grades de ferro,
e, quase trêmula destranca o cadeado e adentra o corredor sumindo para os
fundos do bar.
-
Um beijo! – o rapaz dono da jaqueta, que o manteria seco, exclama para a moça
safada, girando a cigarrilha presa entre o indicador e o dedo médio no ar. Para
ele, todas eram sempre moças. A dele, que já havia sumido no corredor, sorri
uma gargalhada lasciva que deixou espargindo pelo ar, e por alguns momentos,
ouriçou as excitações dos velhos que arremessavam as primorosas bochas.
- Anda, seu merdinha, me diz. Teu pai não tá ai, né?
Com os olhos e corpo estatelados diz um não mexendo a cabeça; seus olhos vão em
direção ao chão, a boca amarga-se, fecha os olhos.
- Fica tranquilo, moleque. Tua mãe é vagabunda mesmo. – caminha voltando
para o balcão. – Põe uma caninha 51 aí. – diz arquejante, em cada pausa.
Dessa vez, o guri atende com brevidade de pensamento, sem fazer apreciação de
seus medos. De alguma maneira, ele também reconhecia as qualidades de sua
origem. Não sem perder o tremor que lhe acossava o corpo, administra uma dose
muito bem servida. O rapaz observa todos os gestos pormenores do guri, enquanto
tira a chave da moto de dentro do bolso.
- Obrigado, filho. – diz o rapaz. O guri assente silenciosamente.
Abrindo o zíper da capa, leva o copo ao
nariz e inspira com doçura o cheiro da cachaça. Respira fundo e puxa para a
boca os últimos catarros que guardara no nariz. Cospe-os no copo. Há
de ser o último mesmo - pensou. Num só gole, sorve a bebida, fazendo
leves barulhos. Bate o copo no balcão. Como se as mãos perscrutassem um caminho
lento, procurando penetrar seus próprios segredos, desveste-se da jaqueta.
Subsequentemente faz o mesmo com o moletom preto. Corria-lhe fogo na alma.
Acena com a cabeça, despedindo-se do guri, e caminha em direção à calçada.
Pensativo, desce os degraus detendo o passo quando chega à frente do bar. E
virando a cabeça em direção ao guri diz: - Mande um abraço, pro Ademar, e,
praquela boceta gostosa. Logo eu a encontro novamente.
Vai em direção à sua leitoinha, tira os
palitos de fósforo do bolso e acende a metade restante de sua cigarrilha. Pouco
depois, com a mão livre, abre o tanque da gasolina. Pela última vez olha para
dentro do botequim e perde os olhos nos corpos saborosamente expostos na
parede. Enfia a mão no bolso traseiro e tira um pedaço de papel dobrado. O
papel apresentava-se amarelado e gasto, com um ou outro furo nas quase
consumidas dobras. Prende os olhos ao logotipo impresso na parte superior,
abaixa os olhos para o meio do pedaço de folha que se desgastava como seu
interior. Deu positivo - pensa. Amassa o papel e ensarta-o de volta no
bolso, conduz novamente os olhos em direção ao tanque da moto e leva o olhar
até o orifício centralizado nele. Primeiro vê o líquido quase brilhando adentro
do tanque, depois sente. Cheira o tanque cheio de gasolina e sorri. Termina de
tirar o capacete que estava quase pendurado na cabeça, deixando-o no asfalto.
Liga a moto.
-
Manda o corno agradecer aos clientes do bar, pelo presente. – Grita, sorrindo,
risca um palito no fósforo. Olha o orifício do tanque, sorri, joga o palito
abrasado dentro. Sorri um grito, acelera e some com a moto em chamas para o
outro lado da rua.
Agachado
à sombra do balcão, Ademar assiste toda a cena, com apenas os olhos, nariz e a
ponta dos dedos, visíveis acima da superfície.
Salvador
Dali – Burning Giraffe (1937)
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