segunda-feira, 27 de maio de 2013

Bicicleta





à  calma.


            O súbito do tempo ainda me faz levantar subitaneamente. Em pé, desligo a música, guardo chaves, cigarros e um isqueiro no bolso. Não estava frio, o vento quase gelado se fazia tal qual o sopro no peito; não era preciso ir embora. Um passo adiante vacila. Lembrei que as melhores coisas da vida são de graça. Só também não lembro se ouvi essa oração ontem, ou nas aulas de algum educador, poeta, ou grego. Espera um pouco, pensei. Sento na cadeira de madeira na praça, sob uma das tantas velhas árvores. Nem a música, tampouco o celular foram de graça. Paguei para ouvir, ou dirigir. Na cadeira novamente sentei, e, ainda que por pouco tempo, pondero e descubro a realidade das dádivas que nos são dadas gratuitamente. Esperar um pouco, acalmar, me faz perder os olhos no derredor, assim se redescobre as flores que brotam nas árvores. Pássaros que voam a direita ou à esquerda, desenhando o céu. As árvores são o dobro da minha imaginação, refletem o todo sob céu ou terra.
            Perco meus olhos nas folhas, frutos ou flores, do topo de uma árvore, que pode ser todas. Meus olhos, quase que lentamente, voltam ao curto horizonte da praça. Ao pé da árvore (escada) um senhor encosta uma bicicleta verde de paralamas brancos, a velha Monark que guarda as histórias de tantos. Diviso com certa dificuldade, ainda assim quase vejo a lentidão ou a calma com que ele aproxima sua bicicleta, seu livro de histórias, até o encosto do tronco. Anoto algo no caderno de bolso, e minha atenção se esvai num tempo que não percebo. Meus olhos se voltam ao pé da árvore, apenas a bicicleta está. À direita, o velho senhor empurra uma carrinhola feita à mão, plástico e madeira. Ele para, e deixa seu carrinho parado no meio do corredor principal da praça, que era guardado pela sombra da árvore que servia de encosto a bicicleta. Poderiam ser as mesmas árvores, a que me protegia da chuva, ou a que protegia o carrinho. Nem ele queria a chuva. Usava um boné brasileiro, na calma e nas cores, moletom e um par de botinas beges. O vento frio lhe acossara a viagem de bicicleta da casa até a praça.
            Quase que à frente da igreja e da bicicleta, ergue a cabeça e disserta mentalmente os corpos e os fenômenos celestes que circundavam sua manhã de trabalho. Com as pernas firmes, sem sair de seu ponto de equilíbrio, examina toda a praça. As folhas caídas, ou as que haveriam de cair. As sujeiras, e os que passam de um canto para o outro. Eu o percebo, minha percepção o escolhe, ele não me vê.  Tudo pulsa, e passa ao redor, os carros que podem ser os mesmos, os mendigos, ou os sapatos que se arrastam. Os restos que ficam na praça, cheiros, ventos sutilmente surgidos no movimento dos corpos. As mesmas folhas caem, abrolhando novos significados à árvore. Ao pé da árvore meus olhos novamente encontram apenas a bicicleta verde e branca, a sombra guarda a praça, ou tronco e a bicicleta. A carrinhola já não está, várias vidas, tudo tange. Nada percebe. Olho para traz, o boné brasileiro começa a varrer.


Salvador Dalí - White Calm (1936)

sábado, 25 de maio de 2013

Homem

O homem acaba sendo homem
em qualquer lugar que ele esteja

Vive pros mesmos deuses, em todos os lugares
ele voa sozinho

Como o pássaro que voa a direita

O homem é homem em qualquer lugar,
esteja ele, ou não, o homem é homem

O homem é romântico, é simbolista
ele é barroco, é renascentista

O homem tem suas épocas de descobrir o tempo,
o amor, a saudade

O homem descobre tudo,
toda humanidade acaba descobrindo tudo, uma hora ou outra

Toda evolução sempre encontra seu caminho.
Toda revolução sempre se encontra


Trampo de Stephen Mackey

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Sorriso refletido


                Perdi meus cabelos ganhando seu amor, vestindo a velha jaqueta cinza me encosto em seu carro estacionado rente a calçada. Seus olhos mantinham-se brilhando como nas primeiras vezes, e, a luz dos postes trazia de volta o preenchimento dos seus olhos no palco de meu peito. Nem me lembrava mais quando havia sido a ultima vez em que nos encontramos, eu, ela, o papel e a caneta.  O pequeno caderno de anotações, que a capa aludia ao infinito, se mantinha guardado sempre no bolso da jaqueta ou da camisa, quase que salvo, atrás do maço de cigarros. Seus olhos ficam mais perto dos meus e, seu sorriso enche minha boca através do seu beijo. Transcendência, os corpos cadentes reencontravam a reminiscência, no tempo ou na saudade.
                Sorrindo seus olhos cerram os meus e, sua boca quase leve encosta na minha. Minhas mãos se encobrem nas suas costas, trocando calor. Uma mão aperta a lateral direita da cintura, a outra com a ponta dos dedos cinge o sutiã azul claro maliciosamente, sob a blusa. Seus punhos cerrados apoiam-se em meu peito, sustentados pelos seus braços duplicados que se recolhem em meu corpo, quando minhas mãos te puxam e você, num gemido, gruda meu corpo. Um beijo, que beijo? Vários deles, sem mesmo sentir o carro, apenas o calor da luz do poste que brilha o rosto lembrando o palco. Beijos param, a avenida some, carro ou barulho. A luz do poste se faz sol. Seu rosto no teu olho, a claridade do poste no seu olhar se completa; amarela. Um sorriso, refletido no olho, significando alegria.
                - Ai...
                Você diz levando as mãos ao rosto, com os dedos abertos cobrindo as bochechas e a boca. Sorri e morde os dedos mínimos, docemente. A boca que me engole em palavras ou gostos, completa um caderno de sonhos. Seu rosto resplandece e sorri, balança um não, lentamente com a cabeça, que mais se parece com um sim; com sorrisos tentando sair da boca em palavras presas. Ela desliza as mãos pelos cabelos pretos, detendo-se no meio fazendo um coque, seus olhos perdem-se numa boca que boquiaberta contempla a luz do poste. Apoia o cotovelo em meu ombro e, fica ali, quase que estática, sorrindo. Olho para o poste, perco ou ganho o céu, olho nos olhos do teu sorriso, olho para o ombro; sorrio o céu.
                - Ai... – digo.
                Numa leveza quase brusca, retira o corpo de meu ombro com brevidade, apoiando-o novamente.
                - Que foi? É por causa do cotovelo? – sorrindo desculpa.
                - Não, não... Pode deixar, eu gosto.
                - Que foi então?
                - Seu sorriso.




      Salvador Dalí - A Couple with Their Heads Full of Clouds (1936)

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Leitoinha



Estaciona a velha leitoinha 125, bem em frente ao bar da bocha; este que era administrado por aquele que lhe matara em sonhos, era o ano de 1978. Num dia nublado em que a pedra do céu apenas enganava a vinda da chuva, desceu da moto usando suas botas marrons de sola rasgada e uma capa de chuva preta sobre um moletom grosso.
Sem tirar por completo o capacete, adentra o bar perdendo os olhos nos vários cartazes  de cerveja estampados na parede. Eram tantos que, por vezes, traziam vertigem aos olhos. Com a mesma lhaneza que entrara no botequim, puxa um dos bancos altos de madeira e senta-se ao balcão. Olha em direção a um guri quase que escondido atrás da estufa de salgados. Para chamar a atenção do guri que, sonso, perdia os olhos na rua, bate com força o punho esquerdo no balcão. O copo americano semicheio de água com uma colher de chá dentro, treme. A água treme, a colher cintila no copo, o vidro de algumas garrafas se encontram; tremem os fios de cabelo da bunda do guri. O bar engole seco, todos olham para o balcão.
- Cadê o merda do Ademar? – solta a voz em alto tom, para o guri ou pra quem quer  que saiba.
[silêncio]
Como outrora, enfia o punho no balcão, dessa vez com mais força.
- Cadê o corno do Ademar, porra!? – diz encerrando os olhos trêmulos do rapaz que nada tinha com aquilo. Desencostando do balcão, levanta-se do banco. Leva a mão esquerda ao bolso da calça e, tira uma moeda. Raspando-a entre o polegar e o dedo indicador, larga a moeda no balcão.
- Uma caixa de fósforos, seu merdinha.
Um dos braços do guri tenta esboçar reação, mas, falha no ar. As pernas o traíam. Num passo rápido, o dono da moeda encosta-se no balcão e, como se chamasse para  a linha de batalha, bate com falange dos dedos da mão direita ligeiramente no balcão.
- Não tem caixa de fósforos, nessa bosta?
O guri olha para o chão, movendo apenas os olhos, sorri um sim medroso e acanhado. Agacha-se e, ao levantar, ensaia um passo para frente e joga a caixa de fósforos na direção de seu medo. O rapaz toma a caixa de fósforos para si e, tira do bolso da capa uma pequena caixa de ferro. Dentro havia algumas cigarrilhas, que aleatoriamente escolhe uma.“O merdinha tem medo mesmo, o puto do pai dele deve ter mais ainda.”.  Caminha em direção ao umbral de entrada, apoia a cigarrilha na boca, risca um fósforo e a acende. Fuma boa parte da cigarrilha num só hausto.
Poucos metros dali, uma mulher empurra uma bicicleta Ceci de um rosa quase claro. Sem que ao menos tentasse disfarçar os olhos dela entregaram-na, quando subitamente, atrelou-os aos do rapaz. Ela sorri o sorriso sem graça de quem tem seu crime descoberto, sem ao menos demonstrar o receio ante ao que poderia lhe sobrevir. De alguma maneira, também sabia que seu marido era um merda, tal qual poderia ser o filho que inocentemente começava ainda que despercebido, a ascender em seu ventre. Ela encosta as mãos no portão feito de grades de ferro, e, quase trêmula destranca o cadeado e adentra o corredor sumindo para os fundos do bar.
- Um beijo! – o rapaz dono da jaqueta, que o manteria seco, exclama para a moça safada, girando a cigarrilha presa entre o indicador e o dedo médio no ar. Para ele, todas eram sempre moças. A dele, que já havia sumido no corredor, sorri uma gargalhada lasciva que deixou espargindo pelo ar, e por alguns momentos, ouriçou as excitações dos velhos que arremessavam as primorosas bochas.
            - Anda, seu merdinha, me diz. Teu pai não tá ai, né?
            Com os olhos e corpo estatelados diz um não mexendo a cabeça; seus olhos vão em direção ao chão, a boca amarga-se, fecha os olhos.
            - Fica tranquilo, moleque. Tua mãe é vagabunda mesmo. – caminha voltando para o balcão. – Põe uma caninha 51 aí. – diz arquejante, em cada pausa.
            Dessa vez, o guri atende com brevidade de pensamento, sem fazer apreciação de seus medos. De alguma maneira, ele também reconhecia as qualidades de sua origem. Não sem perder o tremor que lhe acossava o corpo, administra uma dose muito bem servida. O rapaz observa todos os gestos pormenores do guri, enquanto tira a chave da moto de dentro do bolso.
            - Obrigado, filho. – diz o rapaz. O guri assente silenciosamente.
Abrindo o zíper da capa, leva o copo ao nariz e inspira com doçura o cheiro da cachaça. Respira fundo e puxa para a boca os últimos catarros que guardara no nariz. Cospe-os no copo. Há de ser o último mesmo - pensou. Num só gole, sorve a bebida, fazendo leves barulhos. Bate o copo no balcão. Como se as mãos perscrutassem um caminho lento, procurando penetrar seus próprios segredos, desveste-se da jaqueta. Subsequentemente faz o mesmo com o moletom preto. Corria-lhe fogo na alma. Acena com a cabeça, despedindo-se do guri, e caminha em direção à calçada. Pensativo, desce os degraus detendo o passo quando chega à frente do bar. E virando a cabeça em direção ao guri diz: - Mande um abraço, pro Ademar, e, praquela boceta gostosa. Logo eu a encontro novamente.
Vai em direção à sua leitoinha, tira os palitos de fósforo do bolso e acende a metade restante de sua cigarrilha. Pouco depois, com a mão livre, abre o tanque da gasolina. Pela última vez olha para dentro do botequim e perde os olhos nos corpos saborosamente expostos na parede. Enfia a mão no bolso traseiro e tira um pedaço de papel dobrado. O papel apresentava-se amarelado e gasto, com um ou outro furo nas quase consumidas dobras. Prende os olhos ao logotipo impresso na parte superior, abaixa os olhos para o meio do pedaço de folha que se desgastava como seu interior. Deu positivo - pensa. Amassa o papel e ensarta-o de volta no bolso, conduz novamente os olhos em direção ao tanque da moto e leva o olhar até o orifício centralizado nele. Primeiro vê o líquido quase brilhando adentro do tanque, depois sente. Cheira o tanque cheio de gasolina e sorri. Termina de tirar o capacete que estava quase pendurado na cabeça, deixando-o no asfalto. Liga a moto.
- Manda o corno agradecer aos clientes do bar, pelo presente. – Grita, sorrindo, risca um palito no fósforo. Olha o orifício do tanque, sorri, joga o palito abrasado dentro. Sorri um grito, acelera e some com a moto em chamas para o outro lado da rua.
Agachado à sombra do balcão, Ademar assiste toda a cena, com apenas os olhos, nariz e a ponta dos dedos, visíveis acima da superfície. 



Salvador Dali – Burning Giraffe (1937)