à calma.
O súbito do tempo ainda me faz
levantar subitaneamente. Em pé, desligo a música, guardo chaves, cigarros e um
isqueiro no bolso. Não estava frio, o vento quase gelado se fazia tal qual o
sopro no peito; não era preciso ir embora. Um passo adiante vacila. Lembrei que
as melhores coisas da vida são de graça. Só também não lembro se ouvi essa oração
ontem, ou nas aulas de algum educador, poeta, ou grego. Espera um pouco, pensei. Sento na cadeira de madeira na praça, sob
uma das tantas velhas árvores. Nem a música, tampouco o celular foram de graça.
Paguei para ouvir, ou dirigir. Na cadeira novamente sentei, e, ainda que por
pouco tempo, pondero e descubro a realidade das dádivas que nos são dadas
gratuitamente. Esperar um pouco, acalmar, me faz perder os olhos no derredor,
assim se redescobre as flores que brotam nas árvores. Pássaros que voam a
direita ou à esquerda, desenhando o céu. As árvores são o dobro da minha imaginação,
refletem o todo sob céu ou terra.
Perco meus olhos nas folhas, frutos
ou flores, do topo de uma árvore, que pode ser todas. Meus olhos, quase que
lentamente, voltam ao curto horizonte da praça. Ao pé da árvore (escada) um senhor encosta uma bicicleta verde de
paralamas brancos, a velha Monark que guarda as histórias de tantos. Diviso com
certa dificuldade, ainda assim quase vejo a lentidão ou a calma com que ele
aproxima sua bicicleta, seu livro de histórias, até o encosto do tronco. Anoto
algo no caderno de bolso, e minha atenção se esvai num tempo que não percebo. Meus
olhos se voltam ao pé da árvore, apenas a bicicleta está. À direita, o velho
senhor empurra uma carrinhola feita à mão, plástico e madeira. Ele para, e
deixa seu carrinho parado no meio do corredor principal da praça, que era
guardado pela sombra da árvore que servia de encosto a bicicleta. Poderiam ser
as mesmas árvores, a que me protegia da chuva, ou a que protegia o carrinho. Nem
ele queria a chuva. Usava um boné brasileiro, na calma e nas cores, moletom e
um par de botinas beges. O vento frio lhe acossara a viagem de bicicleta da casa
até a praça.
Quase que à frente da igreja e da
bicicleta, ergue a cabeça e disserta mentalmente os corpos e os fenômenos celestes
que circundavam sua manhã de trabalho. Com as pernas firmes, sem sair de seu
ponto de equilíbrio, examina toda a praça. As folhas caídas, ou as que haveriam
de cair. As sujeiras, e os que passam de um canto para o outro. Eu o percebo,
minha percepção o escolhe, ele não me vê. Tudo pulsa, e passa ao redor, os carros que
podem ser os mesmos, os mendigos, ou os sapatos que se arrastam. Os restos que
ficam na praça, cheiros, ventos sutilmente surgidos no movimento dos corpos. As
mesmas folhas caem, abrolhando novos significados à árvore. Ao pé da árvore
meus olhos novamente encontram apenas a bicicleta verde e branca, a sombra
guarda a praça, ou tronco e a bicicleta. A carrinhola já não está, várias
vidas, tudo tange. Nada percebe. Olho para traz, o boné brasileiro começa a
varrer.
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Salvador Dalí - White Calm (1936) |
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