sexta-feira, 3 de maio de 2013

Leitoinha



Estaciona a velha leitoinha 125, bem em frente ao bar da bocha; este que era administrado por aquele que lhe matara em sonhos, era o ano de 1978. Num dia nublado em que a pedra do céu apenas enganava a vinda da chuva, desceu da moto usando suas botas marrons de sola rasgada e uma capa de chuva preta sobre um moletom grosso.
Sem tirar por completo o capacete, adentra o bar perdendo os olhos nos vários cartazes  de cerveja estampados na parede. Eram tantos que, por vezes, traziam vertigem aos olhos. Com a mesma lhaneza que entrara no botequim, puxa um dos bancos altos de madeira e senta-se ao balcão. Olha em direção a um guri quase que escondido atrás da estufa de salgados. Para chamar a atenção do guri que, sonso, perdia os olhos na rua, bate com força o punho esquerdo no balcão. O copo americano semicheio de água com uma colher de chá dentro, treme. A água treme, a colher cintila no copo, o vidro de algumas garrafas se encontram; tremem os fios de cabelo da bunda do guri. O bar engole seco, todos olham para o balcão.
- Cadê o merda do Ademar? – solta a voz em alto tom, para o guri ou pra quem quer  que saiba.
[silêncio]
Como outrora, enfia o punho no balcão, dessa vez com mais força.
- Cadê o corno do Ademar, porra!? – diz encerrando os olhos trêmulos do rapaz que nada tinha com aquilo. Desencostando do balcão, levanta-se do banco. Leva a mão esquerda ao bolso da calça e, tira uma moeda. Raspando-a entre o polegar e o dedo indicador, larga a moeda no balcão.
- Uma caixa de fósforos, seu merdinha.
Um dos braços do guri tenta esboçar reação, mas, falha no ar. As pernas o traíam. Num passo rápido, o dono da moeda encosta-se no balcão e, como se chamasse para  a linha de batalha, bate com falange dos dedos da mão direita ligeiramente no balcão.
- Não tem caixa de fósforos, nessa bosta?
O guri olha para o chão, movendo apenas os olhos, sorri um sim medroso e acanhado. Agacha-se e, ao levantar, ensaia um passo para frente e joga a caixa de fósforos na direção de seu medo. O rapaz toma a caixa de fósforos para si e, tira do bolso da capa uma pequena caixa de ferro. Dentro havia algumas cigarrilhas, que aleatoriamente escolhe uma.“O merdinha tem medo mesmo, o puto do pai dele deve ter mais ainda.”.  Caminha em direção ao umbral de entrada, apoia a cigarrilha na boca, risca um fósforo e a acende. Fuma boa parte da cigarrilha num só hausto.
Poucos metros dali, uma mulher empurra uma bicicleta Ceci de um rosa quase claro. Sem que ao menos tentasse disfarçar os olhos dela entregaram-na, quando subitamente, atrelou-os aos do rapaz. Ela sorri o sorriso sem graça de quem tem seu crime descoberto, sem ao menos demonstrar o receio ante ao que poderia lhe sobrevir. De alguma maneira, também sabia que seu marido era um merda, tal qual poderia ser o filho que inocentemente começava ainda que despercebido, a ascender em seu ventre. Ela encosta as mãos no portão feito de grades de ferro, e, quase trêmula destranca o cadeado e adentra o corredor sumindo para os fundos do bar.
- Um beijo! – o rapaz dono da jaqueta, que o manteria seco, exclama para a moça safada, girando a cigarrilha presa entre o indicador e o dedo médio no ar. Para ele, todas eram sempre moças. A dele, que já havia sumido no corredor, sorri uma gargalhada lasciva que deixou espargindo pelo ar, e por alguns momentos, ouriçou as excitações dos velhos que arremessavam as primorosas bochas.
            - Anda, seu merdinha, me diz. Teu pai não tá ai, né?
            Com os olhos e corpo estatelados diz um não mexendo a cabeça; seus olhos vão em direção ao chão, a boca amarga-se, fecha os olhos.
            - Fica tranquilo, moleque. Tua mãe é vagabunda mesmo. – caminha voltando para o balcão. – Põe uma caninha 51 aí. – diz arquejante, em cada pausa.
            Dessa vez, o guri atende com brevidade de pensamento, sem fazer apreciação de seus medos. De alguma maneira, ele também reconhecia as qualidades de sua origem. Não sem perder o tremor que lhe acossava o corpo, administra uma dose muito bem servida. O rapaz observa todos os gestos pormenores do guri, enquanto tira a chave da moto de dentro do bolso.
            - Obrigado, filho. – diz o rapaz. O guri assente silenciosamente.
Abrindo o zíper da capa, leva o copo ao nariz e inspira com doçura o cheiro da cachaça. Respira fundo e puxa para a boca os últimos catarros que guardara no nariz. Cospe-os no copo. Há de ser o último mesmo - pensou. Num só gole, sorve a bebida, fazendo leves barulhos. Bate o copo no balcão. Como se as mãos perscrutassem um caminho lento, procurando penetrar seus próprios segredos, desveste-se da jaqueta. Subsequentemente faz o mesmo com o moletom preto. Corria-lhe fogo na alma. Acena com a cabeça, despedindo-se do guri, e caminha em direção à calçada. Pensativo, desce os degraus detendo o passo quando chega à frente do bar. E virando a cabeça em direção ao guri diz: - Mande um abraço, pro Ademar, e, praquela boceta gostosa. Logo eu a encontro novamente.
Vai em direção à sua leitoinha, tira os palitos de fósforo do bolso e acende a metade restante de sua cigarrilha. Pouco depois, com a mão livre, abre o tanque da gasolina. Pela última vez olha para dentro do botequim e perde os olhos nos corpos saborosamente expostos na parede. Enfia a mão no bolso traseiro e tira um pedaço de papel dobrado. O papel apresentava-se amarelado e gasto, com um ou outro furo nas quase consumidas dobras. Prende os olhos ao logotipo impresso na parte superior, abaixa os olhos para o meio do pedaço de folha que se desgastava como seu interior. Deu positivo - pensa. Amassa o papel e ensarta-o de volta no bolso, conduz novamente os olhos em direção ao tanque da moto e leva o olhar até o orifício centralizado nele. Primeiro vê o líquido quase brilhando adentro do tanque, depois sente. Cheira o tanque cheio de gasolina e sorri. Termina de tirar o capacete que estava quase pendurado na cabeça, deixando-o no asfalto. Liga a moto.
- Manda o corno agradecer aos clientes do bar, pelo presente. – Grita, sorrindo, risca um palito no fósforo. Olha o orifício do tanque, sorri, joga o palito abrasado dentro. Sorri um grito, acelera e some com a moto em chamas para o outro lado da rua.
Agachado à sombra do balcão, Ademar assiste toda a cena, com apenas os olhos, nariz e a ponta dos dedos, visíveis acima da superfície. 



Salvador Dali – Burning Giraffe (1937)

Um comentário:

  1. Você faz uma descrição perfeita e que nos leva a imaginar exatamente a cena tal qual ela se apresenta. É muito bom te ler.

    Beijos.

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