sábado, 29 de junho de 2013

Pedra

- Seis filho é muita coisa, mulher.
- Problema é teu, Ixpidito. Tu num quis fazer?
- Eita, Pedra... Uma hora dessas eu num guento.
Eles se entreolham, Pedra lança um olhar fugaz na direção de Expedito, da janela ou dos livros que queria ter lido. Com a cabeça em direção ao teto, Expedito benze o corpo ou a alma. Com Pedra eram seis filhos, saberia a vida pela memória lhe propor as outras possíveis ascendências que ele pudesse ter gerado? Os filhos de casa, ao menos, eram enxergados como um todo, fosse pela fala ou pelo pensamento. Ao consagrar sua matéria à santidade, que talvez estivesse tão próxima quanto o teto ou longe como o firmamento, seus olhos encontravam tons langorosos ao alcançar o altíssimo. No silêncio dos pensamentos de duas pessoas, tudo pode se perder, lembrar e até mesmo aspirar dentro de uma cabeça mais ou menos preocupada.
- Pedra, pres’tenção... – os pensamentos lhe faziam falar. Embora a corrente de solilóquios detenha seus atos, no conhecimento da fúria que sua fala poderia causar aos olhos de Pedra.
- Quié, Ixpidito! – dito e feito, ou melhor, pensado. As palavras daquela mulher, de espírito novo e rosto velho, calaram o silêncio; a palavra. A voz de sua resposta poderia ter ecoado ao longe pelos campos, calou apenas a calada da sala.
Na fazenda tudo se fazia silêncio, à noite no campo sempre é silêncio. Uma ou outra noite, o vento muda e as glebas cantam um som diferente. Mas a memória, assim como fez aos filhos ou como a escuridão da noite faz aos olhos desacostumados, insistia em fazer com que todas as noites parecessem iguais e carregassem a mesma dor. Sentados nas duas poltronas sob a luz da lamparina, aquelas duas pessoas em par comum se faziam distintamente afastadas nas correntes onde pensamentos afluem. Pedra se perdia nos nós entrelaçados, coléricos pelo peso de um dia de trabalho. O velho, Expedito, cansado e ainda tão novo; coitado. Nem sabia mais em que se perdia, nos pormenores sob os singelos paramentos das freiras, ou nas acusações que seu trabalho ou o sagrado poderiam lhe propor. Ele não aguenta, fala.
- São seis, Pedra! Seis!
- Eu já ti disse! – em olhos enfurecidos.
- Colégio de padre pros guri, di freira pras minina. Eu num guento trabalhar tanto Pedra, num guento!
- Inda assim é teu o problema... – terminante. – Pula dessa cama uma, duas hora mais cedo. Se rala inteiro, mas esses guri vão tudo estuda.
Expedito se levanta, agora tão calmo quantos seus pensamentos fluíam, ou quanto seus gestos ratificavam. Ele nem olha pra Pedra e, da mesinha de centro que suportava a vela a iluminar o ambiente, pega um livro grosso repleto de palavras que lhe indicariam e significariam os caminhos que sempre quisera percorrer, caminha até o quarto e deixa a apreensiva Pedra sozinha na sala. Ela mexe agora com maior firmeza ou espanto as agulhas a criar o manto que viria a aquecer suas noites sozinhas; ainda que não soubesse. Expedito emiti sua busca por algo dentro de qualquer caixa, demora uns poucos instantes antes de voltar para a sala e deter o passo ao admirar a sombra de Pedra. Caminha até a porta.
- Vô imbora, descobrir meu mundo antes de quarqué coisa.
[silêncio]
Num sei se precisa me  esperá, Pedra.
Nem olhou para a sombra novamente, ou para o quarto do filho. Abriu a porta e saiu.







Experiment to determine […] the frequency of the movement of the wing…From La machine animale (Animal mechanism), by Etienne-Jules Marey, Paris, 1873




quarta-feira, 19 de junho de 2013

Multidão

            Quantas revoluções eu vi na infância. Muitas delas quis viver, estar ali, noutras sonhei. As conversas que se fazem nos armazéns, a lágrima dos prédios ou um guri de camiseta preta com mangas rasgadas e um cabelo rebelde. Que quantidade de vozes e aspirações aquela multidão poderia conter, não tenho certeza; acho que nunca tenho. A dúvida do meu texto às vezes se perde comigo. Meus pensamentos pouco se faziam distantes das possíveis conjecturas de todos aqueles olhos. É raro minha cabeça estar em silêncio.
            A multidão nos leva, o choque nos para por bem ou mal, antes que nossos sonhos sejam alcançados. Sustentados no ar, minhas apreciações fluem obstinadamente; e se interrompem nos seus olhos. Como sempre sorrindo, amarelos como a flor, sob a luz de um poste. As mãos manchadas de tinta seguram a minha, as maçãs do seu rosto se erguem, esticando a brasilidade estampada em seu rosto. Sorrimos um beijo, ou vários abraços. Nossos sonhos se faziam ali.

            Por vezes, meu sonho ou meus olhos te perdiam, e a multidão te levava como meus pensamentos. Sua boca sorrindo amarela, refletindo a tinta do seu rosto ou a luz dos postes, sempre buscava a minha, a procurar com os olhos ou com a alma dos pensamentos. Seu abraço volta e fica eterno, ou quase, num texto. Longo e duradouro no peito, como um pensamento.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Quarto





á Amanda Stuck;
feliz aniversário.
 
Encostada na janela, ela perdia os olhos nas luzes que se perdiam na cidade. Os prédios não sumiam, a fumaça invadia o quarto, após termos nos invadido. Uma camiseta branca vestia seu corpo, cobria seu seio ganhava minha vida. Sua bundinha, branca como lua cheia, ditava a beleza do quarto, de dentro deu uma calcinha de rendas azuis. A vontade da noite que ainda viria, o ultimo gozo, o fechar e rolar dos olhos que se comiam um sob o outro.
- Cadê o isqueiro? Apagou aqui... – Sorrindo uma quase timidez, seus olhos me sorriem da janela.
Meu corpo, que só não estava ao seu lado em matéria, vai até ela e as costas do teu corpo, me abraçam. Acendo a pontinha sustentada na beirada dos seus lábios, com a mão direita. A brasa consome o verde, a jovialidade dos nossos corpos, a fumaça preenche seu rosto, numa fotografia bonita. Mordo um beijo em sua orelha.
- Espera um tico. – digo.
Busco as duas taças de vinho chileno, e volto ao encontro da janela, do seu corpo. A cama, à meia luz, o chuveiro; um quarto completo, enchendo nosso amor ou a memória do futuro. Um lugar assim, e todo o resto somos nós, penso. O vento me detém, leva meus passos parados. O vinho, teu corpo, ou um gole, me abrem um sorriso.
Meu corpo volta e pela primeira vez, da noite ou da vida, ganha o seu. O melhor sexo, encontro, seu seio molhado em meio as fotografias de um banho. É a primeira que namoro, penso, me enamoro. Me faço em amor.  Uma noite cabe num texto? Acho que não.  Imagine uma vida, então? Nossos corpos fruem, a alma se suspende à matéria, a boca se molha, línguas se encontram. Seu corpo cai sob o meu, fechando uma noite ou um abraço. Respiramos fundo.
- Olha que bonito esse céu. – digo, apontando a janela com os olhos. O céu invadia o quarto.
Uma noite cabe num texto? Não sei, minha escrita se completa em você.

Ilustração de Gladston Barroso.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Conversa sentada



Eram mais que velhos, ou quase,
e sentaram em frente a velha construção.
Possíveis brigas de bar, gritarias da escola.
Sumiam.
Conversavam, sentados, olhavam os olhos.
Grudavam a alma.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Maço

Fumei um cigarro ruim
era o primeiro.
Quis que fosse o último.
Do maço
do coração.