segunda-feira, 22 de abril de 2013

Escapar (Quand je dis ne sort pas)*


           - Alô...
            [silêncio]
              Alô!
            [silêncio]
            Respira fundo e, com o ar de quem mata como os deuses, bate telefone.
            - Quem era?
            - E, eu lá sei?
            - Desliga esse negócio, volta, senta aqui comigo.
            Com um sorriso, que não era meu, esquece o telefone e caminha voltando para o sofá. Eu queria estar ali e poder ver, para ao menos imaginar, que em meu ombro seus cabelos castanhos encontrariam repouso naquele momento. Mas, não era. Imaginar outro sofá, qualquer outro que fosse. Ah, imaginar um sofá em Paris; melhor, um banco de praça. Na última vez que andei por aquelas ruas, que respirei aqueles ares luminosos, com os olhos perdidos na lua, encontrei um banco de madeira. Antes desse telefonema mudo, bem antes, eu já havia imaginado ou sonhado minha mão no seu rosto, sonhar você caminhando ao meu lado nessas ruas de ladrilhos, esquecer de seu rosto e ganhar suas mãos não me pareciam mais um sonho remoto. Dessa vez eu ligo e falo, de verdade, eu vou falar desse sonho em que estou sentado num banco, em qualquer um daqueles bancos parísios e, você, com a cabeça em meu ombro, têm seus cabelos aconchegados perto do meu rosto. Com as pernas dobradas confortavelmente sobre a madeira, você segura uma flor e, com a graça de poder ver o seu perfil, solta um sorriso que enche meu peito.


Por algum tempo, que não sei se foram segundos ou horas, só existiu o delineamento lateral do seu rosto. Linhas sutilmente desenhadas, em poucos segundos, transfizeram-se em um sorriso entrevisto pelos seus cabelos.
Sorrindo, sua boca lia sozinha. Poderia ficar muito tempo ali, por muito tempo poderia ser, ou ter, apenas aquele sorriso. O seu sorriso chegou até mim, contraiu os músculos do meu rosto e peito.
Como perceber a razão desses olhos, de sentimentos verdes, fortes e recentes, sentirem-se ínferos? O sentimento deles nunca é bobo. Olhos que, da mistura do amarelo com o azul, tornam-me vivo, magnetizam a chuva. Por quê eles trazem tanto brilho e encanto aos meus olhos, e sorriso?
Quero dizer várias coisas. No pensamento, elas voam, e tremo diante das palavras. Je pense tellement que quand je dis ne sort pas. Aqui dentro, ficam as palavras que não saem, não passam. Perco-me nas palavras e elas perfazem o tempo.
Ela olha para mim, seus olhos brilham como num poema invisível.
            - Você estava cantando enquanto vinha para cá?
- Por que pergunta isso?
- É porque pensei ter escutado.
- O que você ouviu?
- Nada de mais.
- Pensou que ouviu?
- Não sei. – um silêncio cego, por um instante, pairou. - Mas, parecia com a melodia da música que eu cantava.
- Eu também te ouvi. E, em você, ouvi muito do que eu quis dizer.
- É como se, mesmo antes de me ouvir, você tivesse percebido, cantado, o mesmo que eu.
- Meu som, antes, parecia... Sem ritmo, não, não é sem ritmo... É outra coisa...
- Sem sabor?
- Isso! Agora, sei lá, pelo menos na minha cabeça, ele parece estar em harmonia.
- Para. – interrompem-se, sorrindo. - Faz tempo que eu canto aquela música.
- E, faz tempo que eu tenho minha atenção em você.
Novamente, silêncio. Dessa vez, não era um silêncio desconfortável ou seco. Nunca senti tanto deleite em um silêncio. Não era o sabor do vinho, era outra coisa. Nos olhamos, igualmente, ao mesmo tempo.
A ligeira elevação do canto das nossas bocas pareceu colocar em sintonia dois corpos, ainda que fisicamente distantes. Um sorriso sem começo, fim, ou meio. Um sorriso fazendo-se de palavra, ilimitado em matéria ou espaço.


            Que merda, isso é sonho rapaz. Esquece isso, eu vou esquecer. Deixa quieto aquele pote, tudo que tem ali dentro de moeda... Só esquece. Ai, caramba, eu não vou deixar quieto não tem como oras. Não tem. Eu vou jogar esse pote no rio, é eu vou jogar. Pra ir embora e pensar que passou; mas, eu não conseguiria, a filosofia do rio não me deixaria esquecer. Não vou falar, merda... por que arranha a garganta só de pensar em te convidar pra uma loucura dessa?
            Na penumbra criada pelo abajour, fico apenas sentado e o sono parece nem querer chegar, tal qual o tempo, e, perdido, sem saber se estou num ou noutro, teu sonho perfaz minha realidade. Com o corpo esparramado na poltrona, fecho os olhos e pouco a pouco cada árvore, cada ladrilho de pedra juntam-se a transfazer cada detalhe de uma praça que minha memória não conseguia significar. Respiro fundo e, minha pele fica tremula eriçando meu ânimo como quando você me faz pensar poesia na rua. Abro os olhos e, em realidade, cada pedaço daquela praça lentamente vai surgindo em mim.
            - Olha que bonita, essa flor.
            Nunca, em nenhum sonho, havíamos nos falado; ficava apenas a imagem muda do vento soprando ao nosso redor.
            - É linda. – sorrindo, eu não conseguiria dizer muito.
            [silêncio]
            Poder ver, ouvir, sonhar... Quero sentir você dentro do meu abraço, sentir de perto cada traço que faz seu rosto tão bonito. Eu não vou mais esperar.
            Na sala, interrompendo um beijo, o telefone toca novamente. Chama uma, duas vezes.
            - Espera eu vou atender, rapidinho. – levantando-se.
            - Para, fica aqui... – tentando voltar o beijo.
            - Se não for nada, eu desligo o telefone.
Dessa vez, meu coração batia lento aos passos da ligação; que eu já considerava quase perdida. Ia desligar...
- Alô...
            [silêncio]
              Alô!
            [silêncio]
            - Oi...
            - Alô?
            - Sou eu...
            - Eu sei – interrompe, tentando esconder o sorriso vira as costas para o sofá.
            - Você está ocupada?
            - Não, pode falar.
            - É que...
            [silêncio]
            - Fala... – docemente.
            - Faz uns dias que queria te perguntar um negocio, mas, deixa quieto. Está tarde, não é coisa de importância.
            - Não tem problema, pode falar...
            - É besta... Fo...
            - Você vai demorar pra desligar aí? – do sofá, interrompe a ligação.
            Sem responder, apenas meche as mãos pedindo silêncio.
            - Desculpa, não ouvi o que você disse.
            - Não era nada mesmo, só queria dizer que estou indo pro rio. – com medo, meu coração batia descompassado.
            - Certeza que era só isso?
            - Não...
            - Então diz logo, oras.
            - Fo... Foge comigo?
            - Quê? Está brincando? – Diz, rindo. Aquela risada enchia meu peito mais que a música.
            - Não, não estou...
            [silêncio]
              Foge... Escapa comigo? Vamos pra Paris...


* Indicado na categoria de Melhor Texto Original do Cenata 2013.



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