-
Alô...
[silêncio]
Alô!
[silêncio]
Respira fundo e, com o ar de quem mata como os deuses, bate telefone.
- Quem era?
- E, eu lá sei?
- Desliga esse negócio, volta, senta aqui comigo.
Com um sorriso, que não era meu, esquece o telefone e caminha voltando para o
sofá. Eu queria estar ali e poder ver, para ao menos imaginar, que em meu ombro
seus cabelos castanhos encontrariam repouso naquele momento. Mas, não era.
Imaginar outro sofá, qualquer outro que fosse. Ah, imaginar um sofá em Paris;
melhor, um banco de praça. Na última vez que andei por aquelas ruas, que
respirei aqueles ares luminosos, com os olhos perdidos na lua, encontrei um
banco de madeira. Antes desse telefonema mudo, bem antes, eu já havia imaginado
ou sonhado minha mão no seu rosto, sonhar você caminhando ao meu lado nessas
ruas de ladrilhos, esquecer de seu rosto e ganhar suas mãos não me pareciam mais
um sonho remoto. Dessa vez eu ligo e falo, de verdade, eu vou falar desse sonho
em que estou sentado num banco, em qualquer um daqueles bancos parísios e,
você, com a cabeça em meu ombro, têm seus cabelos aconchegados perto do meu
rosto. Com as pernas dobradas confortavelmente sobre a madeira, você segura uma
flor e, com a graça de poder ver o seu perfil, solta um sorriso que enche meu
peito.
Por algum tempo, que não sei se foram
segundos ou horas, só existiu o delineamento lateral do seu rosto. Linhas
sutilmente desenhadas, em poucos segundos, transfizeram-se em um sorriso
entrevisto pelos seus cabelos.
Sorrindo, sua boca
lia sozinha. Poderia ficar muito tempo ali, por muito tempo poderia ser, ou
ter, apenas aquele sorriso. O seu sorriso chegou até mim, contraiu os músculos
do meu rosto e peito.
Como perceber a
razão desses olhos, de sentimentos verdes, fortes e recentes, sentirem-se
ínferos? O sentimento deles nunca é bobo. Olhos que, da mistura do amarelo com
o azul, tornam-me vivo, magnetizam a chuva. Por quê eles trazem tanto brilho e
encanto aos meus olhos, e sorriso?
Quero dizer várias
coisas. No pensamento, elas voam, e tremo diante das palavras. Je pense tellement que quand je dis
ne sort pas. Aqui dentro,
ficam as palavras que não saem, não passam. Perco-me nas palavras e elas
perfazem o tempo.
Ela olha para mim,
seus olhos brilham como num poema invisível.
- Você estava cantando enquanto vinha
para cá?
- Por que pergunta
isso?
- É porque pensei
ter escutado.
- O que você
ouviu?
- Nada de mais.
- Pensou que
ouviu?
- Não sei. – um
silêncio cego, por um instante, pairou. - Mas, parecia com a melodia da música
que eu cantava.
- Eu também te
ouvi. E, em você, ouvi muito do que eu quis dizer.
- É como se, mesmo
antes de me ouvir, você tivesse percebido, cantado, o mesmo que eu.
- Meu som, antes,
parecia... Sem ritmo, não, não é sem ritmo... É outra coisa...
- Sem sabor?
- Isso! Agora, sei
lá, pelo menos na minha cabeça, ele parece estar em harmonia.
- Para. –
interrompem-se, sorrindo. - Faz tempo que eu canto aquela música.
- E, faz tempo que
eu tenho minha atenção em você.
Novamente,
silêncio. Dessa vez, não era um silêncio desconfortável ou seco. Nunca senti
tanto deleite em um silêncio. Não era o sabor do vinho, era outra coisa. Nos
olhamos, igualmente, ao mesmo tempo.
A ligeira elevação
do canto das nossas bocas pareceu colocar em sintonia dois corpos, ainda que
fisicamente distantes. Um sorriso sem começo, fim, ou meio. Um sorriso
fazendo-se de palavra, ilimitado em matéria ou espaço.
Que merda, isso é sonho rapaz. Esquece isso, eu vou esquecer. Deixa quieto
aquele pote, tudo que tem ali dentro de moeda... Só esquece. Ai, caramba, eu
não vou deixar quieto não tem como oras. Não tem. Eu vou jogar esse pote no
rio, é eu vou jogar. Pra ir embora e pensar que passou; mas, eu não
conseguiria, a filosofia do rio não me deixaria esquecer. Não vou falar,
merda... por que arranha a garganta só de pensar em te convidar pra uma loucura
dessa?
Na penumbra criada pelo abajour, fico apenas sentado e o sono parece nem querer
chegar, tal qual o tempo, e, perdido, sem saber se estou num ou noutro, teu
sonho perfaz minha realidade. Com o corpo esparramado na poltrona, fecho os
olhos e pouco a pouco cada árvore, cada ladrilho de pedra juntam-se a
transfazer cada detalhe de uma praça que minha memória não conseguia
significar. Respiro fundo e, minha pele fica tremula eriçando meu ânimo como
quando você me faz pensar poesia na rua. Abro os olhos e, em realidade, cada
pedaço daquela praça lentamente vai surgindo em mim.
- Olha que bonita, essa flor.
Nunca, em nenhum sonho, havíamos nos falado; ficava apenas a imagem muda do
vento soprando ao nosso redor.
- É linda. – sorrindo, eu não conseguiria dizer muito.
[silêncio]
Poder ver, ouvir, sonhar... Quero sentir você dentro do meu abraço, sentir de
perto cada traço que faz seu rosto tão bonito. Eu não vou mais esperar.
Na sala, interrompendo um beijo, o telefone toca novamente. Chama uma, duas
vezes.
- Espera eu vou atender, rapidinho. – levantando-se.
- Para, fica aqui... – tentando voltar o beijo.
- Se não for nada, eu desligo o telefone.
Dessa vez, meu coração batia lento aos
passos da ligação; que eu já considerava quase perdida. Ia desligar...
- Alô...
[silêncio]
Alô!
[silêncio]
- Oi...
- Alô?
- Sou eu...
- Eu sei – interrompe, tentando esconder o sorriso vira as costas para o sofá.
- Você está ocupada?
- Não, pode falar.
- É que...
[silêncio]
- Fala... – docemente.
- Faz uns dias que queria te perguntar um negocio, mas, deixa quieto. Está
tarde, não é coisa de importância.
- Não tem problema, pode falar...
- É besta... Fo...
- Você vai demorar pra desligar aí? – do sofá, interrompe a ligação.
Sem responder, apenas meche as mãos pedindo silêncio.
- Desculpa, não ouvi o que você disse.
- Não era nada mesmo, só queria dizer que estou indo pro rio. – com medo, meu
coração batia descompassado.
- Certeza que era só isso?
- Não...
- Então diz logo, oras.
- Fo... Foge comigo?
- Quê? Está brincando? – Diz, rindo. Aquela risada enchia meu peito mais que a
música.
- Não, não estou...
[silêncio]
Foge... Escapa comigo? Vamos pra Paris...
* Indicado na categoria de Melhor Texto Original do Cenata 2013.
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