Uma velha preta, grudada numa cabeleira
preta, num olho preto. O nervosismo, ou o amor, faziam lhe atacar o bruxismo. Perdida
em meio a casa imunda, aquela cabeleira preta, confundia-se ao cheiro de mijo
ou dos pingos. Andava sozinha e escura, feito treva, ou, sob trevas, caminhava arrastada
em passos de romaria, nos restos de gatos, a procurar sua própria veneração;
aos dedos, ou, ao amor. Resquícios de pessoas, cheiros, corpos novos e bonitos.
Pequenos fragmentos do que se foi ou teve, pingavam. Pingos soavam de alguma
das torneiras, ou, da banheira cheia; a transbordar no andar de cima.
Como
ter a certeza de que era velha, em meio à escuridão da casa. Viam-se, quase que
luminosas, as rugas acentuadamente caídas de seu rosto, e, nele sua mão
direita. A mão, buscando o toque do carinho ou da saudade, cinge as mandíbulas com
a firmeza do polegar e do dedo médio. Ainda há de faltar algo. Falta o dedo
indicador, o que prenuncia, e, aponta; sustentando o nariz. O indicador é quem
deveria delinear o rosto, os outros dois dedos pareciam presos apenas à queixada.
Faltava o que pudesse indicar o caminho para as rugas luminosas daquele rosto. A
falta do dedo exibia o conflito entre aquela mulher solitária e seu medo.
Como
uma criança que não reconhece a si, tampouco o próprio nome, aquela mulher não via
seu rosto. Fosse, talvez, o escuro, ou, quem sabe, a falta da memória de um
sorriso doce. Não poderia ver novamente os olhos de seu rosto, nunca saberia,
ou havia esquecido-se dele. E eles também não sabiam como era seu rosto. Os zumbidos,
sussurrados e incertos, de vozes que faziam naquela casa, também não podiam
vê-la. Não se enxerga o que houve, no som da voz, nos sentidos daquele rosto.
Sentia-se
inerme ante as próprias vontades, ante a falta, à vontade, de que seus olhos
encontrassem novamente o seu rosto. As vozes lançavam-lhe um olhar agreste que a
tomavam pela tartamudez. Sentia-se envilecida, escorregara a mão disforme pelo
corpo buscando o afago das coxas. No meio da sala, vestida com trapos de
chita, senta-se ao chão molhado. O umedecer de suas calcinhas confundia-se ao
quente, quase frio, da urina dos gatos que se espalhava pelo chão. Em meio ao
infinito do escuro, cruzava as pernas fazendo com que o vestido subisse, de
quando em quando, um pouco mais. As vozes acossavam-lhe as coxas, as quais
lentamente recebiam caminhos lúbricos traçados pela mão em forma de pinça com
polegar e médio feitos em unhas pretas, rastros que eram sutil e atentamente
ditados em seus ouvidos.
As
vozes de um sonho quase sujo argumentavam-na quanto à realidade do que ali
ocorria, sob os pingos da banheira; sob a urina dos gatos que por ela passaram.
Ela, porem, nunca havia tido memória boa. Nunca havia se lembrado de como
acordara, se as manhãs eram sonho, parte dele, ou, da vida. Aquela não tinha memória
ruim, diziam que não tinha. Dias depois, acordou dentro do banheiro, o corpo
confundia-se entre estar de bruços, e, a briga do umbigo quanto a ver o céu. Sempre
que acordara, sentira a memória de todos os sonhos latejando em seu peito. Mas,
não se recordava de nada que pudesse ter ocorrido naqueles dias que se faziam
noite. Merda, nenhuma. No dia em que se lembrou, ficou presa. Estava encerrada na
clausura daquele sonho que não sabia se era dela ou de alguém, viu duas
realidades entrepostas. Pulou de um prédio, e, caiu de sonho em sonho até meter
a cara em um. O mais solitário, o dela. Perdera-se dentro dos próprios sonhos,
bebeu e afogou-se neles. Perdera-se no tempo, no tempo dos meus sonhos;
fantasias. Acho que nunca reparei nas horas, apenas no relógio. Queria a memória
dos sonhos, lembrar o que era, o inicio. Agora, se estava morta ou viva, não sei.
Os sonhos não permitem reconhecer a isto.
![]() |
La Rebelion, automatic drawing - Antonio Ramirez http:// |
Nenhum comentário:
Postar um comentário