terça-feira, 23 de abril de 2013

Farol





            - Tá fazendo o que aí?
            - Vem’qui.
            - Tá me estranhando é? Não te conheço, fale comigo com respeito.
            - Desculpa.
            - Vá... – girando o rosto com desdém. – Levanta logo...
            - Tudo bem, eu me levanto...
            Lentamente ele levanta-se do chão, com os olhos enternecidamente ligados ao céu. Nunca se soube, ao certo, quanto tempo ele poderia ter se mantido ali estático com o olhar magnetizado no céu. Por alguns segundos, enquanto suas pernas vacilantes tentavam sustê-lo, desvia com lentidão o olhar do céu para o chão e do chão para a viatura com luzes altas a lhe tentar roubar o encanto do firmamento. Os policiais deixam-no sozinho, um deles pega o telefone e busca no som distante de uma voz feminina uma das poucas belezas que a farda não lhe deixara perder. O outro, já encostado num muro próximo, abre as calças e tira seu membro de dentro da cueca segurando-o com a agrura de um lavrador que não consegue mais levar a enxada ao trabalho. Desvia o olhar, este o entregava. Assovia um fado português, para que a urina saísse de sua bexiga em direção ao muro.
            - Vamos embora, Bonaza, este aí num é de nada não. – o pé preto impedia-lhe de sentir o quente da urina espirrando em seus pés.
            Durante a distração dos meganhas aquele sujeito, vestido em andrajos, que a pouco morara nos céus, termina de levantar-se e em passos desleais caminha até a viatura. Ao perceber a movimentação, Peixoto esquece o mijo e, correndo com as pernas na forma de um alicate, para que as calças não vacilassem em revelar sua vergonha, tenta alcançar o andarilho. Este que, trôpego, praticamente deslizara o corpo no capô em direção à porta da barca.
            - Te orienta rapaz, te orienta... Que... Se te alcanço! – as calças arriando-se até o meio das coxas tornavam sua oração mais burlesca que ameaçadora.
            O andarilho alcança a porta da viatura, em passos tão ofegantes quanto sua respiração. Sem entrar, enfia as mãos pela janela, tateia bruscamente o volante; encontra a tomada do farol, desligando-o. Puxa fundo o ar, pelo nariz, enchendo o diafragma e solta pela boca como que livrasse o corpo da morte. As luzes perturbavam-no. Adotando uma postura firme no andar, volta ao seu ponto de origem, olha para o policial; estende-o a mão. O guarda esquece suas vergonhas, endireita as pernas, suas calças caem. Fica ali, estático, detido em quimeras. Os faróis impediam-lhe enxergar a alma.
            - Vem aqui. – chamando o guarda para sua direção. – Desculpa. Com toda gentileza do mundo. Olhe esse céu, por favor. Esquece as palmeiras da avenida, esqueça as sirenes, ou, o medo. Apenas olhe... O céu irá arrebatar seu espírito, mesmo sem o dinheiro da basílica. Olha pra cima, pede junto comigo por um lugar em que se possa deitar no meio de ruas asfaltadas ou terrosas, e, se consiga olhar o céu. Apague todas essas luzes, apaguem os postes. Que em nosso peito haja apenas lampiões a nos mostrar o céu de nossa alma. Eu nasci aqui ó, vivi aqui. Um dia precisei sumir, chegou a hora que voltei. Olhe essas escadas... Quero andar, deitar, sentir o frio das escadarias que circundam minha casa. Quantas vezes esse céu se fez sobre elas. Quantas vezes por aqui passei e, ofuscado pela luz dos postes, não vi as estrelas. Quero luzes que não escondam o céu.
            Com cara lavada, o outro policial volta de algum lugar fechando as calças, despedindo-se com carinhos diminutivos ao telefone. Depara-se com um mendigo e um policial de calças arriadas deitados no chão, com o olhar morto preso ao céu.



Rene Magritte - The False Mirror (1928)



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